segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Considerações sobre racismo da sociedade brasileira atual



Por Reinaldo João de Oliveira
(Através de releituras e contrapartidas de outros autores, abaixo explicitados[1])

Seria importante que hoje pudéssemos socializar um pouco de nossa compreensão sobre este ponto, como algo realmente muito relevante para toda sociedade, de modo que fortaleçamos nossas articulações no intuito de alcançarmos objetivos pontuais de mudança.

Há poucos dias, a Ministra da Cultura (Marta Suplicy) disse em conferência que “Nós temos a lei, mas o racismo é muito enraizado”. E ainda, continuando, afirmou: "Nós temos uma dívida e esta dívida não foi paga", disse isso em defesa do projeto de lei de cotas raciais e sociais para estudantes em universidades públicas e instituições federais de ensino. A matéria foi aprovada em maio pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, sendo sancionada pela presidente Dilma em outubro deste ano. Apesar da vitória, a fala de Marta mexe com o fato de as leis serem importantes, porém insuficientes para superar o racismo.

Um aspecto para considerarmos é o seguinte: o lado subjetivo e o objetivo do racismo enquanto crime:

Primeiramente o objetivo, é que o racismo se configura como crime, segundo previsto na lei 7.716/89 do código penal brasileiro. Mas, como podemos aplicar a lei se na maioria dos casos, em análise pelos organismos jurídicos, não passa de fatores subjetivos na compreensão dos fatos?

Um fato já amplamente discutido e evidenciado, inegavelmente, nas pesquisas sobre o assunto é que, de fato, existe racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul.

O racismo presente na sociedade brasileira é, na maioria das vezes, sutil e velado. E, pelo fato de ser sutil e velado não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto - faz vítimas de qualquer maneira.

Mas, por que é mais difícil configurá-lo? Pelos métodos utilizados, geralmente aplicados, nos diversos meios do direito (defensores e serventuários mais acentuados são do conhecimento pleno como operadores públicos da justiça.

O ministro Joaquim Barbosa, em um comentário recente, na sua argüição sobre o processo de “inconstitucionalidade da lei de cotas nas universidades”, disse ao defender a constitucionalidade das mesmas que “lei é pra ser cumprida e não discutida”. Coisa que a sociedade ainda não absorveu e muito menos consegue, ou quer, entender – a começar pelos próprios agentes da transformação/mudança destes parâmetros nas IES. Mas, o que isso tem a ver com o tema do racismo?

Simplesmente porque você não se consegue, ou quer, identificar o opressor, que geralmente é aquele que reproduz a ideia conservadora sutil e velada por trás da não-afirmação legal.

Para diferenciar um pouco com os EUA, para definir ou implementar as políticas, naqueles contextos, eram relativamente mais aceitáveis porque começava pelas leis. A primeira reivindicação, porém, não era a implementação, mas o fim das leis racistas e, depois, a luta para implementar políticas públicas que buscassem a promoção da igualdade racial.

Aqui é mais difícil, porque não se vê na lei a discriminação, mas também não de via a proteção (hoje se tem pelas leis já muito discutidas, como a 7.716/1989; a 10.639/2003; 11.645/2008; além do Estatuto da Igualdade Racial, transfigurado pela lei 12.288/2010,  que institui o mesmo Estatuto; altera as Leis nos 7.716/1989, 9.029/1995, 7.347/1985, e 10.778/2003.

Hoje, as leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.

Também por isso tudo que aqui no Brasil há mais dificuldade com relação as implementações, justamente por conta do mito da democracia racial, que tornou-se um viés indispensável para o debate nessas discussões. Quando imaginamos estarem já resolvidas

Então, ainda vemos muitos grupos/pessoas que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade (já debatida e provada pelo STF que não, com unanimidade em todo o Tribunal – coisa rara!).

Outro argumento contrário, que nos aparece e que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. Outro problema incutido na mentalidade de muitos leigos e também gente esclarecida e cheia de ideologias, ao afirmarem que o Brasil é um país mestiço, onde muitos brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano. E, consequentemente, seria difícil saber quem é afro-descendente e quem poderia ser beneficiado por ações de caráter etnico-racial.

Tais argumentos argumentos não resistiram. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação. Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte da população brasileira. Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar.

No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas. Ainda precisamos acrescentar a isso um caráter de emancipação pela educação, se é que seja possível isso. Há pesquisadores/as afirmando que não. Que a realidade deve ser outra, por via econômica, financeira, de REPARAÇÃO.

O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra políticas de ações afirmativas pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse criando vítimas diariamente, durante todos esses anos, séculos. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em ações afirmativas para negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito.

Vejamos que numa pesquisa feita pelo IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Aí os que são contra todo tipo de política para uma promoção étnico-racial (a exemplo das ações afirmativas) ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.

Há juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível. Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente.

O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.

Há também negros que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos.

Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda. Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar". Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita.

Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "você já discriminou alguém?". A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar... Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "você que é complexado, o problema está na sua cabeça". Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Assim, o racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.
                                                                                           
Foi o que ocorreu em vários casos envolvendo o humorista Danilo Gentilli, que escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista. Faz parte desse imaginário hipócrita da sociedade. A mesma coisa ocorreu na comparação do cantor Alexandre Pires e do jogador de futebol Neymar, junto a outros artistas (todos negros), em um clipe que entrou em cheio nessa discussão sobre o racismo impregnado na consciência de todos, mesmo sem pensá-lo, refleti-lo, como se faz por grupos do movimento negro, ou instituições de governo para a promoção e igualdade racial no Brasil. 

Prato cheio foi o debate, que se abafou posteriormente, principalmente pela mídia televisiva, em programas das emissoras Rede Globo e Bandeirantes (Na Moral, com Pedro Bial e Agora é Tarde, do próprio Danilo Gentili, entrevistando e repudiando aqueles que consideravam ofensivos a relação feita por estes tons humorísticos/cômicos misturados intencionalmente com ironia). E, na verdade, o que estaria por trás de uma ilustração de King Kong, que ele compara um jogador de futebol com uma loira? A ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira? Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade. Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador? Incomoda a quem com uma mentalidade invadida pelo racismo se vê envolvido de alguma forma praticando um preconceito que não respeita a vontade de pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esses humorista fazem ilustrações disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.

Pontos importantes: É preciso fazer com que a sociedade enxergue que é racista. Apesar de observamos avanços, como programas de cotas nas universidades, a sociedade ainda não entende e nem considera a questão de forma mais ampla e séria.

As empresas costumam responder a incentivos governamentais e a medidas que moldam os negócios. Algumas estão mais atentas a essa conversa e entendem que a valorização da diversidade pode beneficiar não apenas os negros diretamente, mas toda a sociedade em geral. As pessoas falam muito que o Brasil está na posição de líder mundial, pois é dono de alguns dos maiores recursos naturais do planeta. No entanto, as pessoas são os maiores recursos que um país pode ter. E o maior recurso do Brasil é a sua população. É preciso dar oportunidade para que todas essas pessoas possam contribuir, deixar que os negros, por exemplo, mostrem seus talentos. É preciso fazer a mudança para uma sociedade mais integrada e saber lidar com as divisões sociais para incluir a população marginalizada.

É preciso identificar quais são os erros para depois ver onde estão as oportunidades para mudança. Assim, tal como nos EUA, o governo deve ter um papel fundamental e muito significativo ao encorajar as empresas a abrirem a cabeça sobre a questão racial. Isso se dá através de projetos que mudam a forma de fazer negócios. Como o governo é sempre um dos atores mais importantes do mercado para cada setor, seus estímulos são fundamentais. Quando o governo cria incentivos para que as empresas tenham acesso a mercados que antes não alcançavam, a mudança vem. Essas mudanças e incentivos aparecem nos contratos. Por exemplo, empresas com políticas de inclusão de minorias ganham vantagens nos processos de licitação do governo. Mas, é claro que, para uma empresa de porte menor, fazer ações afirmativas pode significar custos. E, se isso lhe der acesso a mercados que até então não atingia, claro que se torna interessante para seu negócio. A partir disso, as empresas precisaram mudar as formas de recrutar seus funcionários, de procurar as pessoas, pois, se não faziam o que estava no contrato, levavam multas.

A mudança nos EUA aconteceu num momento de confluência entre sociedade, administração, Congresso e Corte. Por isso, não foi apenas a Sociedade Civil mobilizada. Teve um momento, em que todos tiveram essa percepção de que é preciso olhar essas diferenças. Mas cada instituição deve fazer seu papel para haver integração.

Acredito que uma força de trabalho homogênea não seja rentável para uma empresa. Ninguém vai conseguir atingir o mercado e clientes com uma estratégia monocromática. As empresas precisam ter diferentes perspectivas e formas de pensar em novos negócios. Uma empresa paroquial não consegue entrar num mercado global que é completamente diverso hoje. E as empresas perceberam que há vantagem competitiva em incorporar uma visão multicultural que reflita nos produtos e na imagem.

Esse movimento não é linear, não vai sempre para frente. Em algumas áreas, depois da queda da economia. Por isso é importante de pensar que o progresso também se faz com queda na economia, se faz onde há movimento, que inclusive sofra um retrocesso. É Preciso ter a habilidade constante de ajustar ferramentas de acordo com os acontecimentos históricos, isso em termos de justiça, saúde e educação, para fazer grandes progressos.

Nem sempre as coisas funcionam o tempo todo. Também é natural que, às vezes, o terceiro setor puxe as mudanças e outras vezes o governo lidere. Temos de aceitar essas nuances. Todo movimento tem suas fases de avanço e retrocesso. É preciso estar vigilante em relação às ferramentas, aos discursos e às circunstâncias sociais, a exemplo da Globalização e de outros fenômenos que ocorrem pelo mundo todo, envolvendo parte fundamental na cultura e no âmbito social.


[1] Observações: As contribuições neste artigo foram de leituras e releituras gerais a partir de autores e de pessoas que pensam hoje a temática afrodescendente, como: Milton Santos (in memoriam); Kabengele Munanga (professor de antropologia na USP); Kimberlé Crenshaw (professora de direitos civis das universidades de Columbia e da Califórnia em Los Angeles - Ucla) e do também norte-americano Luke Charles Harris (professor de ciências políticas do Vassar College). Com outras participações em fóruns e seminários sobre ações afirmativas para a promoção da igualdade racial pelo Brasil.
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"Contra a intolerância racial e Combate ao racismo institucional - Lei 7.716/1989"

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