segunda-feira, 19 de julho de 2010

O insustentável preconceito do ser!, por Rosana Jatobá

O insustentável preconceito do ser!, por Rosana Jatobá
Escrito pela jornalista Rosana Jatobá

Era o admirável mundo novo! Recém-chegada de Salvador, vinha a convite de uma emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter. Solícitos, os colegas da redação paulistana se empenhavam em promover e indicar os melhores programas de lazer e cultura, onde eu abastecia a alma de prazer e o intelecto de novos conhecimentos. Era o admirável mundo civilizado! Mentes abertas com alto nível de
educação formal. No entanto, logo percebi o ruído no discurso:


- Recomendo um passeio pelo nosso "Central Park", disse um repórter. Mas evite ir ao Ibirapuera nos domingos, porque é uma baianada só!


-Então estarei em casa, repliquei ironicamente.
-Ai, desculpa, não quis te ofender. É força de expressão. Tô
falando de um tipo de gente.


-A gente que ajudou a construir as ruas e pontes, e a levantar os prédios da capital paulista?


-Sim, quer dizer, não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam alto e fazem "farofa" no parque.


-Desculpe, mas outro dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu a janela do carro e atirou uma caixa de sapatos.


-Não me leve a mal, não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás, adoro a sua terra, seu jeito de falar....


De fato, percebo que não existe a intenção de magoar. São
palavras ou expressões que , de tão arraigadas, passam
despercebidas, mas carregam o flagelo do preconceito. Preconceito velado, o que é pior, porque não mostra a cara, não se assume como tal. Difícil combater um inimigo disfarçado.


Descobri que no Rio de Janeiro, a pecha recai sobre os "Paraíba", que, aliás, podem ser qualquer nordestino. Com ou sem a "Cabeça chata", outra denominação usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.


Na Bahia, a herança escravocrata até hoje reproduz gestos e
palavras que segregam. Já testemunhei pessoas esfregando o dedo indicador no braço, para se referir a um negro, como se a cor do sujeito explicasse uma atitude censurável.


Numa das conversas que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:


-O Brasil gosta de se imaginar como uma democracia racial, mas isso é uma ilusão. Nós temos uma marcha de carnaval, feita há 40 anos, cantada até hoje. E ela é terrível. Os brancos nunca pensam no que estão cantando. A letra diz o seguinte:


"O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, quero o teu amor".


"É ofensivo", diz Miriam. Como a cor de alguém poderia contaminar, como se fosse doença? E as pessoas nunca percebem.


A expressão "pé na cozinha", para designar a ascendência africana, é a mais comum de todas, e também dita sem o menor constragimento. É o retorno à mentalidade escravocrata, reproduzindo as mazelas da senzala.


O cronista Rubem Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um artigo no qual ressalta:


"Palavras não são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar os fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a palavra 'niger' para humilhar os negros. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho assim: 'Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe'...que quer dizer, agarre um crioulo pelo dedão do pé (aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro, usa-se a palavra crioulo).


Em denúncia a esse uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o slogan 'black is beautiful'. Daí surgiu a linguagem politicamente correta. A regra fundamental dessa linguagem é nunca usar uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém".


Será que na era Obama vão inventar "Pé na Presidência", para se referir aos negros e mulatos americanos de hoje?


A origem social é outro fator que gera comentários tidos como "inofensivos" , mas cruéis. A Nação que deveria se orgulhar de sua mobilidade social, é a mesma que o picha o próprio Presidente de torneiro mecânico, semi-analfabeto. Com relação aos empregados domésticos, já cheguei a ouvir:


- A minha "criadagem" não entra pelo elevador social!


E a complacência com relação aos chamamentos, insultos, por vezes humilhantes, dirigidos aos homossexuais ? Os termos bicha, bichona, frutinha, biba, "viado", maricona, boiola e uma infinidade de apelidos, despertam risadas. Quem se importa com o potencial ofensivo? Mulher é rainha no dia oito de março. Quando se atreve a encarar o trânsito, e desagrada o código masculino, ouve frequentemente:


- Só podia ser mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!


Dependendo do tom do cabelo, demonstrações de desinformação ou falta de inteligência, são imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:


-Só podia ser loira!


Se a forma de administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:


- Só podia ser judeu!


A mesma superficialidade em abordar as características de um povo se aplica aos árabes. Aqui, todos eles viram turcos. Quem acumula quilos extras é motivo de chacota do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega, baleia ...


Gosto muito do provérbio bíblico, legado do Cristianismo: "O mal não é o que entra, mas o que sai da boca do homem".
Invoco também a doutrina da Física Quântica, que confere às
palavras o poder de ratificar ou transformar a realidade. São
partículas de energia tecendo as teias do comportamento humano.


A liberdade de escolha e a tolerância das diferenças resumem o Princípio da Igualdade, sem o qual nenhuma sociedade pode ser Sustentável.


O preconceito nas entrelinhas é perigoso, porque , em doses
homeopáticas, reforça os estigmas e aprofunda os abismos entre os cidadãos. Revela a ignorancia e alimenta o monstro da maldade. Até que um dia um trabalhador perde o emprego, se torna um alcóolatra, passa a viver nas ruas e amanhece carbonizado:


-Só podia ser mendigo!


No outro dia, o motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111 detentos, e nem a canção do Caetano Veloso é capaz de comover:


-Só podia ser bandido!


Somos nós os responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui em São Paulo , no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo. É a consciência do valor de cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o que temos de melhor para dizer uns aos outros.


PS: Fui ao Ibirapuera num domingo e encontrei vários conterrâneos.
..
Rosana Jatobá é jornalista, graduada em Direito e Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, e mestranda em gestão e tecnologias ambientais da Universidade de São Paulo. Também apresenta a Previsão do Tempo no Jornal Nacional, da Rede Globo. /
ESSE TEXTO é PARTE DA SéRIE DE CRôNICAS SOBRE SUSTENTABILIDADE PUBLICADA NA CBN

Nenhum comentário:

Postar um comentário