Como documentei no meu livro Comunicação e Poder, o poder se baseia no controle da comunicação. A reação histérica dos Estados Unidos e outros governos contra o Wikileaks confirma isso. Entramos numa nova fase da comunicação política. Não tanto porque se revelem segredos ou fofocas como porque eles se espalham por um canal que escapa aos aparatos de poder. O vazamento de confidências é a fonte do jornalismo de investigação com que sonha qualquer meio de comunicação em busca de furos. Desde Bob Woordward e sua garganta profunda no Washington Post até as campanhas de Pedro J. na política espanhola, a difusão da informação supostamente secreta é prática usual protegida pela liberdade de imprensa.
A diferença é que os meios de comunicação estão inscritos num contexto empresarial e político suscetível a pressões quando as informações resultam comprometedoras. Daí que a discussão acadêmica sobre se a comunicação pela internet é um meio de comunicação tem consequências práticas. Porque se o é (algo já estabelecido na investigação) está protegida pelo princípio constitucional da liberdade de expressão, e os veículos e jornalistas deveriam defender o Wikileaks porque um dia pode ser a vez deles. Ocorre que ninguém questiona a autenticidade dos documentos vazados. De fato, destacados periódicos do planeta publicaram e comentaram esses documentos para regozijo e educação dos cidadãos que recebem um cursinho intensivo sobre as misérias da política nos corredores do poder (com efeito, por que Zapatero está tão preocupado?).
O problema, diz-se, é a revelação de comunicações secretas que poderiam dificultar as relações entre estados (o perigo para vidas humanas é baboseira). Na verdade seria preciso sopesar esse risco contra a ocultação da verdade sobre as guerras aos cidadãos que pagam e sofrem por elas. Em qualquer hipótese, ninguém duvida que, se essas informações chegassem aos meios de comunicação, estes também quereriam publicá-las (se poderiam é outra questão). E mais: uma vez difundidas na rede, publicam-nas. O que está em questão é o controle dos governos sobre seus próprios vazamentos e sobre sua difusão por meios alternativos que escapam à censura direta ou indireta. Um tema tão fundamental, que motivou uma reação sem precedentes nos Estados Unidos, com apelos ao assassinato de Assange por líderes republicanos e até colunistas do Washington Post e uma grita mundial generalizada de Chávez até Berlusconi, com a honrosa exceção de Lula e a significativa reação de Putin.
A esta cruzada para matar o mensageiro se uniu a justiça sueca numa historia rocambolesca onde o pseudofeminismo se alia à repressão geopolítica. Dá-se que as namoradas suecas de Julian Assange (alguém investiga sua conexão com serviços de inteligência?) o denunciaram porque em pleno ato (consentido) a camisinha rasgou, ela diz que não queria continuar e Assange não pôde ou não quis interromper o coito e isso, segundo a lei sueca, poderia ser violação. O que não impediu que a violada organizasse no dia seguinte em sua casa uma festa de despedida para Assange. A partir de tamanho ato de terrorismo sexual, a Interpol emite uma euroordem de prisão com nível de alerta máximo, desmentindo que seja por pressão dos Estados Unidos. E quando Assange se entrega em Londres, o juíz não aceita fiança, talvez para envia-lo aos Estados Unidos via Suécia.
Com o mensageiro atrás das grades, falta mandar para lá a mensagem. E aí começam pressões que levam a que PayPal, Visa, MasterCard e o banco suiço do Wikileaks fechem suas contas, que cancelem seu domínio e que a Amazon o remova de seus servidores (o que não impede a Amazon de oferecer por 7 dólares o conjunto completo de e-mails vazados). A contraofensiva internauta não se fez esperar. Os ataques de serviços de inteligência contra a rede do Wikileaks fracassaram porque proliferaram as redes espelho, ou seja, cópias imediatas das redes existentes mas com outro endereço. A esta altura há mais de mil em funcionamento (se quiser ver a lista google wikileaks.mirror). Em represália à tentativa de silenciar o Wikileaks, Anonymous, uma popular rede hacker, coordenou ataques contra as empresas e instituições que o fizeram. Milhares de voluntários se juntaram à festa, utilizando o Facebook e Twiiter, embora com crescentes restrições. Os amigos do Wikileaks no Facebook superaram o milhão e aumentam a uma pessoa por segundo. Wikileaks distribuiu a 100.000 usuários um documento encriptado com segredos supostamente mais danosos para os poderosos, cuja chave se espalharia caso a perseguição se intensifique.
Não está em jogo a segurança dos estados (nada do revelado põe em perigo a paz mundial nem era ignorado nos círculos de poder). O que se debate é o direito do cidadão de saber o que fazem e pensam seus governantes. E a liberdade de informação nas novas condições da era da internet. Como dizia Hillary Clinton em sua declaração de janeiro de 2010: "A internet é a infraestrutura icônica da nossa era. Como acontecia com as ditaduras do passado, há governos que se voltam contra os que pensam de forma independente usando esses instrumentos". Agora ela aplica a si mesma essa reflexão?
Porque a questão fundamental é que os governos podem espionar, legal ou ilegalmente, aos seus cidadãos. Mas os cidadãos não têm direito à informação sobre aqueles que atuam em seu nome, a não ser na versão censurada que os governos constroem. Neste grande debate vão ver quem realmente são as empresas de internet autoproclamadas plataformas de livre comunicação e os meios de comunicação tradicionais tão zelosos de usa própria liberdade. A ciberguerra começou. Não uma ciberguerra entre estados como se esperava, mas entre os estados e a sociedade civil internauta. Nunca mais os governos poderão estar seguros de manter seus cidadãos na ignorância de suas manobras. Porque enquanto houver pessoas dispostas a fazer leaks e uma internet povoada por wikis surgirão novas gerações de wikileaks.
Tradução: Eduardo Graeff | Fonte: Blog do Esmael Moraes
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